quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Maria

"Ah, então é um encontro."
Foi isso que Milena me disse, pouco antes de eu sair de casa, quando comentei inocentemente que encontraria você no terminal para irmos juntos. "Quem mais vai?" foi a pergunta que veio antes, e só agora vejo como ela já planejava me acusar de estar fazendo tudo que eu disse, tantas vezes, que não faria. É quase cômico.
— Não é um encontro, eu juro — jurei.
O olhar que ela me lançou é impossível de descrever. (Ela não te odeia.)

Feliz que estava, vestindo meu casaco falso de burguesa, meu melhor batom vermelho, a meia-calça com quase nenhum rasgo, saí para a noite fria. O vento uivando, fazendo meu cabelo dançar, e eu me perguntando se não deveria ter apostado num cachecol.
O primeiro sinal de que a noite seria incomum (mas positiva) foi quando uma mulher caridosamente pagou minha passagem para que eu pudesse pegar um desses ônibus sem cobrador. Agradeci o quanto pude, lamentei não ter nada além de uma nota de vinte, mas ela pareceu não se incomodar; comentou ter gasto uma passagem a menos naquele dia. Pequenas ações altruístas.
No terminal, deixei passar apenas um 303. Você chegou logo, e demorei pra me permitir ficar confortável, possuída pela ideia de que você só aceitou minha companhia por mera educação. Não posso negar, ainda estou presa à isso. Mas você parecia contente, satisfeito com o bolso interno do seu casaco, carregando sua já característica bolsa preta, um Roberto desenhado nela (antes de Robertos serem Robertos, diga-se de passagem). A conversa fluiu, como sempre, e passeamos por tantos assuntos que mal me lembro; seria impossível listar. Me pergunto com certa frequência como conseguimos falar tanto; me impressiona e assusta em proporções muito semelhantes.
Os assuntos variam entre amenidades e problemas, o leve e o obscuro, e nós entramos e saímos desses vórtices com facilidade, quase sem carregar nada. No meio desse vem e vai, chegamos ao destino. Caminhando até a universidade, eu me perguntava se nossa aparência acusava inocência; afinal, por mais que existam incontáveis poréns na nossa relação, não há maldade.
Chegamos ao nosso destino, recebemos o programa da apresentação da Camerata, e fomos em busca de lugares. O auditório estava lotado, e emanava uma energia diferente do comum. Eu fiz sinal pra que você fosse na frente e escolhesse os lugares, mas recebi uma recusa e uma frase que dizia algo como "Eu não sou bom nisso, faça você". Tomei a frente, escolhi os assentos e nos acomodamos. Não demorou e uma senhora elegante nos abordou.
— Olá — ela sussurrou, o tom extremamente cuidadoso, curvando o corpo para se aproximar —, esses assentos do meio estão reservados para os moradores de rua. Mas se vocês estiverem confortáveis, não precisam sair. Só estou avisando, e caso vocês prefiram mudar de lugar, podem sentar nas cadeiras dos cantos, que são para o público. Mas se estiver tudo bem pra vocês, podem ficar.
Estávamos inclinados para ouvir o que ela dizia, e gosto de pensar que você ficou tão chocado quanto eu quando ela sugeriu que trocássemos de lugar. Educadamente recusei — por nós dois.
Era uma apresentação especial da Camerata para angariar alimentos para pessoas em situação de rua. Eu me lembrava vagamente de ter lido isso na descrição do evento, mas para minha mais agradável surpresa, essas pessoas não eram apenas o alvo da campanha, mas da apresentação.
Não tenho palavras para descrever com a devida fidelidade como essa noite foi importante pra mim. A experiência de estar numa plateia que não se aquietava, comovida, e cujas reações acompanhavam sem pudor suas emoções, foi única. Você, ao meu lado, não se preocupava em disfarçar os olhos marejados; um homem que sente. Boquiaberto, atencioso, estava ali de corpo e alma, um amante da música, sensível às suas influências e poderes. [In]Felizmente minha atenção era toda das vozes talentosas que ocupavam o palco, então minha análise dá-se pelo que captei com o rabo dos olhos, mas mesmo assim. É bonito.
Compartilhamos emoções, risos disfarçados, comentários bobos e julgamentos inofensivos. Não posso dizer que chorei, porque infelizmente o chorar se tornou uma sina para minha existência, carregando pesos que não posso soltar, mas devo admitir que senti minha voz embargada por um instante, quando me inclinei sobre você e confessei amores pela voz grave que nos havia acariciado os ouvidos. O que durou pouco mais de uma hora e meia, por mim, poderia ter durado a noite toda.
Quando acabou, depois de diversas palmas, gritos e assobios, aguardamos para cumprimentar o astro da noite. Enquanto o auditório se esvaziava rapidamente, a Camerata se reunia no palco, posando para fotos, e eu sugeri que fizesse você mesmo uma fotografia, com sua já tradicional câmera analógica. Foi como se eu tivesse te contado um segredo, tal foi seu estalo; quero muito ver essa foto. André, o astro, finalmente se fez disponível, clara e genuinamente feliz com nossa presença. Nos apresentou sua mãe, madrinha e avó, comentou sobre tudo e mais um pouco, radiante. Fomos todos juntos até a saída; enquanto vocês dois riam alto, é claro que fui conversando com a mãe. Nunca conheci uma que não me amasse instantaneamente, e embora não entenda esse fenômeno, me faz muito feliz. Quando chegamos à frente da universidade, hora das despedidas. Abracei a madrinha, a avó, a mãe; parabenizei pelo rapaz brilhante que pariu e criou. Ela deu uma risada honesta e eu me senti mais leve. Abracei André com toda gratidão e boas energias que sou capaz de emanar. Eu sei que não é muito, não precisa rir, mas foi sincero. Enquanto eles discutiam o próximo passo (um ônibus ou um Uber, a clássica discussão contemporânea), eu te olhei, já segurando o fôlego, e perguntei da forma mais cínica que consegui:
— E você, já vai embora?
Cerrou de leve os olhos de estrela, abriu um daqueles sorrisinhos curtos de canto de boca e disse exatamente o que eu queria ouvir:
— Ah, pensei em tomar uma cervejinha, né?
Nossos olhares cúmplices se tocaram e eu sorri.
Não há nada em você que não seja exatamente o que eu quero.
"Adeus, tchau, obrigada, até amanhã". Despedidas finalizadas, me viro pra você a fim de decidir o próximo passo, quando vejo com o canto dos olhos uma figura conhecida. Amiga antiga, parece agitada. Não vou me aprofundar muito, mas ela passava por um momento complicado, confuso. A maquete do TCC2 deu errado; níveis invertidos, material jogado fora, trabalheira manual foi pras cucuias. Estava à beira de lágrimas, se me perguntar, mas percebi que o riso desesperado ocupava todo seu ser, concentrando sua energia. Ajudei como pude, num momento tão delicado — e repentino. Passei o telefone de uma cortadora a laser, sugeri uma gramatura de papel, e desejei boa sorte. Ela parecia aflita, mas honestamente, eu não sabia o que fazer. Percebi que você assistia àquela cena tão confuso quanto eu. Quando ela se foi, tensa, mas com uma perspectiva de salvação, nós dois finalmente tomamos nosso caminho: o bar.
Uma quadra e meia depois, chegamos. Você já tinha pago uma cerveja a mais alguns (poucos) dias antes, quando nos reunimos por acidente no boteco que eu mais adoro; lá você conheceu o querido Lucas, carinhosamente apelidado Barzonzinho, e nós dois conversamos sobre tudo, como sempre, inclusive sobre nós. É uma conversa que tem sido recorrente, e isso me desagrada profundamente*. Foi, no entanto, pequena parte de todos os milhões de assuntos discutidos, conversados, ridos. Sua companhia é, de fato, importante pra mim. Muito mais do que você imagina. Talvez mais do que eu imagino. A cerveja a mais, no entanto, ainda me assombrava, e eu quis pagar naquela noite.
— Vou comprar duas, pra ficarmos quites — tentei, já sabendo que você encontraria algum empecilho.
— Se você comprar duas, eu compro duas também.
— A gente não vai beber quatro litros. 
Aqui, um olhar desafiador.

Acomodamo-nos numa mesa alta, com banquetas confortáveis, na porta do bar. A cerveja congelada fui eu que trouxe, mas foi você que levou de volta pro balcão; eu tive preguiça. Pra minha sorte, você é muito educado. Voltou com uma garrafa apenas suficientemente gelada. Servi nossos copos, brindamos, e por um milésimo de segundo, senti como se não houvesse no mundo forma mais simples de me fazer feliz. Sua companhia me é suficiente de tantas maneiras... espero algum dia poder te fazer sentir qualquer coisa minimamente similar à essa alegria que me preenche quando percebo como somos bons amigos, como sua presença e atenção me bastam, e como sinto que existe, de alguma forma, uma reciprocidade real dentro da nossa relação. Não é sempre que acredito nela, mas nesse dia, acreditei. Começamos com longas dissertações sobre a apresentação emocionante que havíamos acabado de presenciar, e mesmo com o clima frio, a cerveja gelada descia confortavelmente; uma sensação de carinho em minha garganta. A conversa seguiu seus trilhos confusos, mas contínuos. Você tem uma mania de tomar a cerveja em grandes goles; pobre do copo americano. Reparei desde a primeira vez que saímos para beber, e verdade seja dita, isso me irrita desde então, mas quem sou eu para corrigir a forma como você bebe? Algumas linhas não devem nunca ser cruzadas. 
O primeiro litro voou; passou rasante pelos meus olhos, sem deixar sequer rastro. Você, ágil, correu pro bar com seu papelzinho na mão, e voltou logo. Não tenho muitas descrições pra este momento; mal sei dizer quanto tempo ficamos no bar. O que sei dizer é que as cervejas foram embora, e eu me senti muito ingênua; já deveria saber que grande pinguço você é: um do mesmo calibre que eu. Começaram a baixar as portas e ficamos atentos. Você então foi buscar a nossa saideira, que foi servida em copos descartáveis de quinhentos. Com a cerveja pra viagem, saímos para a noite fria. Descrevo como noite fria simplesmente porque eu vestia um belo casaco e meias grossas, mas sequer posso afirmar qual era o clima. À essa altura, as memórias começam a se tornar um pouco mais turvas do que o de costume, mas de duas coisas me lembro com clareza: precisávamos fazer xixi (os dois), e eu pedi que pegássemos o ônibus (talvez o último) na Rui Barbosa, porque queria muito te mostrar o apartamento novo. Não mostrar, claro, mas passar por ele, te tornar parte daquilo tudo de alguma forma. Você sequer titubeou. 

Quando começamos a seguir pela Westphalen e entramos na quadra certa, eu comecei a caminhar para o canto da calçada, afim de olhar para o apartamento; mas você, que estava me seguindo como uma sombra, não percebeu o que eu fiz, e me trombou com força. Sequer sei dizer qual cerveja foi, mas voou na minha roupa, molhou meu braço, encharcou o folheto da Camerata que eu segurava nas mãos. Ri descontroladamente, enquanto você parecia ainda mais confuso que o normal. Avisei que estava apenas olhando para cima para ver o apartamento, indignada com a sua falta de atenção, e você só sabia pedir desculpas. Foi então que eu vi que a placa de "Aluga-se" havia desaparecido da imensa janela da frente; lembro de sentir um arrepio novo percorrer todo meu corpo. Foi nessa noite, nesse momento alcoolizado, que finalmente percebi que as coisas estavam acontecendo, eu ia me mudar, e estava fazendo tudo acontecer praticamente sozinha (mas isso é assunto pra outro texto). Apartamento apresentado, seguimos para o tubo. Ambos desesperados por um banheiro, sim, e foi por isso que a ideia brilhante surgiu: vamos até a Rua 24 Horas. Certamente está aberta — confiamos cegamente no título que carrega — e nos deixariam usar o banheiro. Passos apertados e risos contidos, "caralho, eu preciso muito mijar". Chegamos. Um bar aberto, graças à deus. Educadamente pedimos para por favor usar o toilette, e deixaram. E aqui o detalhe que não vou esquecer; tocava 1406, do Mamonas Assassinas, nos alto-falantes. Comecei a cantar com a maior naturalidade do mundo, e você mais uma vez pareceu tão perdido quanto uma criança sozinha num hipermercado. 
— Todo mundo conhece essa música.
— Eu não conheço.
— É Mamonas Assassinas! Você não teve infância?
— Meu pai não ouvia Mamonas Assassinas.
— E o que seu pai ouvia?
— João Gilberto.
Tenho certeza de que ri na rua cara, sem disfarçar.
Descemos as escadas (havia escadas, sim, perigosíssimas), e quando passamos pelo bar, mãos vazias, você não se conteve:
— Vamos tomar um gim-tônica?
Mais tarde soube que você quase não sugeriu porque pensou que eu negaria. Para sua (não aparente) surpresa, peguei a carteira, honestamente admirada pela ideia genial de beber mais álcool. Acomodados nas banquetas confortáveis do bar, que na verdade fechava as portas, dividimos uma boa dose de gim, água tônica e limão (talvez uma folhinha de hortelã). O barman e a mulher no caixa não pareceram se incomodar com a nossa presença, e nós certamente não parecíamos ter pressa alguma, portanto, tudo estava bem. Não faço a menor ideia do que conversamos; a cerveja já havia sido muito bem absorvida pelas nossas correntes sanguíneas, e eu só consigo me lembrar de uma sensação maravilhosa de paz permeando toda a minha existência. 
Quando o gim se foi mas ainda restava alguma água tônica na lata, foi óbvio: "Você pode me ver mais uma dose, por favor?". Duas doses de gim para duas pessoas já alcoolizadas é mais do que suficiente. Continuamos acomodados nas mesmas banquetas, no mesmo balcão, até que finalmente bebemos tudo e eu decidi que era hora de ir embora. Seu 99 estava com desconto, portanto você chamou o carro. E é aqui, exatamente neste instante, que começa a minha tragédia. Você me perguntou sobre, e sinto muito, mas eu menti. 

Enquanto esperávamos pela nossa carruagem moderna, eu me aproximei de você. Não sei se foi apenas por ser uma bêbada descarada e carente, ou se eu senti frio e procurei calor, ou qualquer que tenha sido a razão, mas fui me aconchegando no seu abraço. E você deixou. Quando me dei conta (e por essa inocência, suspeito que tudo tenha acontecido porque senti frio), meus braços acomodaram-se ao seu redor e me percebi abraçada em você, olhando seu celular. Nenhum de nós parecia preocupado. Bem, você não tinha motivo algum, mesmo. Mas eu deveria estar. 
Quando o carro chegou, entramos juntos no banco de trás. Provavelmente eu entrei primeiro, ou dei a volta, porque me lembro de estar atrás do motorista, do lado esquerdo. Quando começamos a andar, me aproximei novamente, aconchegada no seu ombro, abraçada em você como uma preguiça. Sua mão repousou — inocentemente? Nunca vou saber — no meu joelho direito, e disso eu me lembro com clareza sóbria: um arrepio correu pela minha espinha. Seus dedos acariciavam aqueles quatro centímetros quadrados de mim — a pele sob a meia-calça ardia, como se seus dedos fossem brasa — e eu só conseguia sentir uma mistura alcoólica de tesão, confusão e tristeza. Tesão porque até a sua respiração me excita; confusão porque, bem, eu não faço a menor ideia de como você se sente sobre mim, se tem vontade de me beijar, de me foder, ou de ser apenas mais um homem fora da minha categoria Amigos Com Quem Posso Transar; tristeza porque eu já sabia que nada ia acontecer, mas a esperança (como descrevo em outros momentos) acaba comigo. Você conversava com o motorista e eu agradecia em silêncio; geralmente quem faz esse papel sou eu, mas naquela noite eu só queria existir. Sabe, por um milésimo de segundo eu considerei erguer o rosto, te olhar nos olhos e tomar uma atitude. Foi como uma injeção de adrenalina bem no meu estômago, e eu tive certeza de que você retribuiria, então iríamos para sua casa e dormiríamos juntos — talvez literalmente. Durou exatamente isso: um milésimo de segundo. Ouso dizer que te provoquei, perguntando algo sobre para onde eu iria, mas você foi evasivo, mesmo que entre risos. Quando o carro estacionou em frente ao meu condomínio, me despedi com um beijo no rosto, dei adeus ao motorista, e descemos — eu e meu ego ferido. Cheguei em casa a própria frustração. Escovei os dentes, despi minhas mentiras, deitei na cama, vi suas mensagens; ignoradas deliberadamente. Dormi com lágrimas batendo na porta.

Dia seguinte, uma ressaca leve me coçando a nuca, mas a alegria pelas boas lembranças era mais forte. Nos encontramos, e você quis perguntar o que diabos havia acontecido para que eu mandasse aquela mensagem — algo dizendo "não faça isso" —, mas te convenci de que estava tudo bem. Mentindo. Infelizmente minto muito pra você. É necessário para a manutenção da nossa relação. 

Só não sei por quanto tempo terei forças para sustentar essas mentiras. Mal sei dizer quem estou tentando proteger com tudo isso. Você? Eu? Me fazer crer que sou capaz de conviver com o homem por quem sou apaixonada sem deixar que isso destrua nossa amizade? Mas por quê? Por que é pior sem você? Quando me permito refletir sobre tudo isso por um momento, concluo que minha intenção é apenas provar que sou feita de pedra.
O único problema é que não sou.


*[Não gosto de pensar que existe em você qualquer necessidade de esclarecer o que quer que seja, e me apavora pensar que você tenha esses pensamentos passeando pela sua mente a qualquer momento. Isso é tudo culpa minha, e não importa o que eu faça, quanto eu implore, não há maneira de fazer com que você esqueça tudo que já nos aconteceu. Eu sei que soa exagerado, mas você é incapaz de conceber o quanto sinto ódio de mim mesma por ter, em algum momento, fraquejado tanto à ponto de expor minha ferida mais profunda.]

domingo, 24 de novembro de 2019

the one

hold it;
hold it all together.
swallow that hard pill today,
and be aware
that you will swallow it again
tomorrow.

hold it;
keep it all together.
take every piece of
what once was a feeling
and make sure to put it all
into a big glass jar
right above your bed
so it will be an effective reminder.

hold it;
get your shit together.
I don't know where you got
this idea of
being vulnerable,
but I suggest you let it go.
there is no time for you
to suffer.
there is no time for you
to cry.
there is no place in your life
even for the tiniest doubt.
not now.

hold it;
hold your breath.
hold it until
you can't feel
anything
at all —

and then
move forward.

for that is who you are
that is who you were
and that is
pretty much
who you will always be.

the one who holds it all
and never let anyone fall;
never allows the boat to sink;
never surrenders to the storm;
the one
who stands.

sábado, 9 de novembro de 2019

Trechos


Perdi a conta
de quantas vezes

quis te escrever
só na última hora.
[09.11.19, 21h06]
Trecho I: Queria que nos comunicássemos por cartas, pra que eu te enviasse todas, e só daqui dez dias você soubesse o quanto senti sua falta. Falando sobre tempo  —  o imediato, que nos atormenta hoje  — , concluí que, em muitos momentos, tudo que quero é o depois. Queria eu que meus sentimentos fossem cartas, e só daqui dez dias eu os sentisse, entendesse (nem agora…) ou tivesse qualquer ciência de sua[s] existência[s].

Trecho II: […] Hoje me apaixonei pela minha futura casa, seu chão de madeira, suas paredes quinquagenárias, seus azulejos díspares, a banheira rasa. E deus sabe que eu queria compartilhar com você cada detalhe que me fez amar a mais singela possibilidade de que aquele seja meu futuro lar; talvez entendesse porque os armários velhos do banheiro fazem meu coração parar por um milésimo de segundo. Para ser completamente honesta, eu não sei dizer se você gosta de apartamentos quinquagenários com piso de taco, mas amaria descobrir. Engolir com você uma garrafa de vinho tinto seco e falar sem parar sobre como me fez feliz o fato de o apartamento ser o número 15. Me peguei questionando à mim mesma; se estaria mais feliz (ou menos melancólica) se estivesse falando com você. Quão curioso, não? O nível da minha dependência emocional. E sei que “emocional” não engloba tudo. A minha dependência das nossas piadas, da minha própria risada, de pensar na melhor forma de te fazer rir também.
Me sinto incompleta.
E odeio — O D E I O — esse sentimento.
Chamo de sentimento, não sensação, deliberadamente. Sei que você entenderia a diferença.

Trecho III: […] Sempre fui tão boa em reprimir sentimentos, não sei o que houve dessa vez. Na verdade, talvez eu saiba. Se me permitir honestidade, a razão de tudo foi esperança. O sentimento mais tóxico que já passou por esta carcaça cansada. Esperança já me arrancou cada lágrima pesada… esperança já me jogou do alto de escadas, já encarcerou celebrações; esperança tirou de mim tudo, absolutamente tudo que se pode barganhar.

Trecho IV: […] Quanto medo pode habitar uma única mulher? Uma única alma? Um único corpo cansado? Não sei mensurar. Há medo demais em quem eu sou. […] Meu único e maior medo é sentir. Morro de medo dos meus sentimentos, juro por deus. Isso, e a falta de consciência — e por isso, temo enlouquecer. Já vi a loucura de perto, e a temo demais. Por isso, talvez, sinta essa necessidade quase arrebatadora de manter o controle. Controle. A ilusão do controle é uma delícia, não?
[Mas] Estou sendo repetitiva. Desculpe, estou escrevendo há mais de uma hora e em muitos momentos me perdi no raciocínio, como sempre faço — e você bem sabe. A cerveja começa a fazer efeito. […]; vai manchar a tinta. […] O absurdo de escrever nesse tempo verbal apenas porque me imagino falando com você. É a saudade.
Desculpa.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

threat

I'm not afraid of anything.

I used to be, not long ago
when the sky would seem to swallow my soul
the trees would howl my name in the dark
and even the wind felt like a threat.

But now
I've cursed the sky
torched it with my stormy anger.
I've warned all living things,
my steps weighing existence itself,
carrying all my unshed tears.

I am the echo of a sacred silence.
I am the thunder reaching your bones.

Now
I am the only threat.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Counting on me

I know, I know
I carry too many scars.

The past I cannot leave behind,
the memories I cannot deny.

I know, I know
I carry too much weight.

Guilty for my mistakes
and for everyone else's, as well.

I know, babe, I swear I know
I shouldn't be drinking
I shouldn't be running
I should look into my own eyes
and tell myself to calm the fuck down.
But I can't.

I know, sweetheart, I heard you
the first time,
but once in a while I simply can't get up,
my shoulders won't stand that much exhaustion,
my knees can't find enough strength;
once in a while
I allow myself to be weak.

I know, I know
you are counting on me.
Everyone is.

What you don't know
is that I am not.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Medo

Sou como uma
veterana de guerra;
meus ossos doem,
minha pele exibe
o cansaço da existência,
e já não cubro mais
as marcas
em meu rosto.

O amor me feriu
de forma tão cruel
[as cicatrizes ardem]
e eu me percebo
temerosa.

Não me machuque
[mais].

A dor
tornou-se
inerente
ao amor

e não posso,
não consigo
— e honestamente,
não quero —
me desapegar
do meu medo.

Pois quão perigoso
pode ser
permitir-me acreditar
em quem quer
que seja?
Baixar a ponte,
desligar a cerca elétrica
e destrancar as portas
me parece má ideia.

Deixar alguém entrar
soa como o princípio
do fim.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Amargo

Primeiro de agosto de dois mil e dezenove

Cê não sabe quantas vezes planejei minha despedida nos últimos treze dias. Toda noite me preparo para te dizer adeus; adeus à tudo que finjo que você representa, adeus às nossas conversas infindáveis, adeus à esse conforto que encontrei na sua compreensão profunda de tudo, absolutamente tudo sobre mim. É injusto. Não pode haver alguém no mundo que me leia com tanta facilidade. Alguém que ria junto comigo exatamente das mesmas palavras. Alguém que possua tanto poder para me magoar como você, agora, neste instante. Não posso permitir que você exista, entende? A sua presença no meu cotidiano é uma afronta à todos os cuidados que tomo para nunca mais ser machucada. Passei anos erguendo estes muros, e pra quê? Você chegou carregando todas as chaves.

As lágrimas contidas me ardem os olhos e o grito que jamais atravessará minha garganta queima todos os meus órgãos. Saber que você está tão próximo e permanece intocável é o suficiente para me fazer querer beber um vidro de veneno. Mas eu entendo. Sou consciente — ou procuro ser, juro por deus — sobre minha aparência e minha personalidade. Sei que sou, na melhor das hipóteses, intragável. E por isso, me choca você ainda não ter desaparecido da minha vida, com uma desculpa qualquer, ou sem desculpa alguma. Puf, e nunca mais. Já aconteceu antes, não me surpreenderia se acontecesse outra vez. Todos os dias me convenço de que você está na verdade aguardando o momento certo para dar adeus e nunca mais voltar.

É difícil, porque suas lágrimas marcaram minha memória como tatuagens, e hoje sei que você será mais uma dolorosa história anotada à tinta e lágrimas por diversas folhas soltas pelos meus cadernos. Me sinto exposta, porque você sabe de tudo isso, e eu tive certeza, no momento em que abri a boca, que você evaporaria no segundo seguinte; mas não aconteceu. Por quê? Por que você insiste em me contar suas tristezas e pensamentos completamente aleatórios? Por que me manda fotos da sua família? Por que ainda me lê seus textos e mostra suas anotações maldosas [ainda que bem intencionadas]? Por que se desgasta gravando áudios quilométricos, explicando toda e qualquer coisa, para ter certeza de que estou prestando atenção? Por que você aparenta se importar? Por que aceita meus convites para beber, e se empenha tanto em me fazer gostar das músicas que você gosta? Por que você me faz sentir importante, se em breve eu não serei mais que uma brisa nas suas lembranças? Em menos de duas semanas, haverá uma nova no meu lugar. Eu sei disso.

Mas nada, absolutamente nada disso importa. Eu não vou dizer adeus. Eu não vou embora. Não posso. Você cresceu raízes e eu não tenho força para arrancá-las; me faltam ferramentas, me falta vontade. O amargor da sua ausência seria muito maior do que estou disposta a experimentar, especialmente neste momento da minha vida, quando até a mais doce das companhias me parece tão insossa. Você é isso; é a pimenta adicionada aos ovos mexidos, é o vinho claro demais durante a tarde, o adocicado suave da cerveja que eu gosto. 

É óbvio que me pergunto o tempo todo se você percebe a maré subindo e baixando dentro de mim; se você nota o quanto eu observo todos os seus movimentos, o quanto eu temo pelo momento em que você finalmente cairá em si e me expulsará da cadeira na sua porta, do seu apartamento, das suas fotos, do teu lado no sofá batido, do seu telefone, da sua vida. É como se eu estivesse segurando o fôlego desde o primeiro momento em que trocamos um riso cúmplice. Desde então, tudo é apenas um instante antes do fim.

Vinte de agosto de dois mil e dezenove, 21h10

Te deixei para trás e não sei como não me desfiz em lágrimas quando o "Tchau" escapuliu desses meus lábios falsos. Amaldiçoo todos os meus sentimentos. E o dia em que te descobri linda carcaça. 

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Adeus?

Me arrependi
de passar meu telefone,
de acreditar nas suas palavras,
de não seguir meu instinto
que apitava como um alarme,
soando ensurdecedor,
avisando
que algo estava errado.

Me arrependi
de confiar no tempo;
como pude não suspeitar
desse seu tom ameno,
desse seu aparentemente
inofensivo retorno?

Me arrependi
e agora estou aqui
lembendo as feridas
que deixei você
abrir.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Unlucky

Sinto como se durante
toda a minha vida
eu tenha
deliberadamente
tomado todas as decisões
erradas

e agora
precise lidar
com todas as consequências
que nunca medi.

Não escolhi
me sentir tão vazia
e distante
a ponto de ser incapaz
de me enxergar
pertencente
ao que quer que seja.

Definitivamente
não escolhi
carregar sob os ombros
o peso de um planeta
imaginário,
habitado por paranoias
e uma fauna completa
de inúmeras
inverdades
criadas especialmente
para (e por) mim.

Não escolhi
sempre me apaixonar
por meninos:
ou imaturos,
ou distantes,
ou bêbados,
ou apaixonados eles mesmos
por outra pessoa.

Não escolhi
(por que quem em sã
consciência escolheria)
viver de forma avessa
à essa aparentemente popular
inércia emocional,
sentindo tudo com
força demais;
há choro, riso, ódio,
êxtase, dor, abandono.
Exposta às influências do mundo,
e à sua mercê.

Não escolhi,
mas me sinto.
Mas carrego.
Mas me apaixono.
Mas vivo.

Que falta de sorte
a minha.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Passageira

Quando eu passar,
você não se lembrará
de como soa minha risada
ou de ter descrito
a cor dos meus olhos,

mas sei que há de lembrar
as lágrimas que derramei
e os suspiros
pesados como chumbo
que deixei escapar.

Quando eu passar,
você terá vislumbres
da brasa morna dos meus cabelos
em sonhos [ou pesadelos],
mas a minha voz

soará clara como água,
rugindo palavras de ordem
a torto e a direito,
dando à mim mesma
desequilibrada importância.

Quando eu passar
terei sido nada mais que
uma breve centelha,
e muitas vezes me assombra
essa constatação;

em outros momentos,
me resta apenas aceitar
que é isso que sou,
é o que tenho sido,
e é o que serei.

Suave lampejo,
um vislumbre inconsciente,
habitante das memórias distantes,
um sopro
passageiro.

domingo, 30 de junho de 2019

esvair-se

o problema não é você
como não é ele
e nunca foi ninguém.

o problema sou eu
e o tamanho da ausência dentro de mim.

o problema é que meu medo
me engole por completo
antes mesmo de eu perceber
o que acionou o gatilho.

o problema é que
ao menor vislumbre de abandono
me arrependo
me culpo
e me pergunto
o que há de tão errado comigo?

porque há em mim
o peso de uma existência
cercada de talvezes 
e poucos motivos;
inúmeras tristezas e dores
que nunca deveriam ter 
me habitado.

tão condicionada 
pela aceitação de terceiros
de estranhos
de completos desconhecidos
ou rápidos alguéns.

e por quê?

quando houver essa resposta
haverá mais tempo
e menos pânico
para que eu seja melhor companhia
e não apenas tempestade
destruindo relações
deixando maus entendidos
e depois

e s v a i n d o.

sábado, 29 de junho de 2019

mirror

I look in the mirror
my everyday mirror
but there's someone else
in the reflection.
I'm walking down
the street I walk
everyday
but there is
someone else
on the shadow.
Who's that person
taking my place?
And why am I
fading away...

14.06.2018

domingo, 23 de junho de 2019

vazia

ser vazia é um sentimento que preenche
entope as veias, abarrota os quartos
vaza pelas frestas e invade todo resto

ser vazia é um sentimento imenso
ocupa todos os meus pensamentos
invalida minhas conquistas
fere meus momentos de paz

ser vazia é um sentimento complicado
emaranhando todas as minhas certezas
perpetuando minhas dúvidas

[e de tempos em tempos
vem e me arranca um pouco das entranhas.]

ser vazia é um sentimento que corrói
e muito em breve não terá restado nada de mim
senão qualquer lembrança
de alguém que tentou não pular da janela
tentou não beber veneno nem usar uma faca

a lembrança de uma tentativa
a lembrança de um imenso vazio
preenchido com tanto de si
que se foi.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

stone-hard

fragile as crystal glass
pretending to be stone-hard.

how much did it mean to you

how much did it hurt you

how deep has your sorrow penetrated

why can't you come back to the surface

why would you keep diving

why ain't you resisting

how does it feel
to perceive your bones sinking

how does it taste
the salty flavor of your tears

how vast is the solitude
you surrendered to

how long did it take for you
to realize
you are going to be alone
forever?


sexta-feira, 7 de junho de 2019

Novo

23 de maio de 2019

É engraçado como tenho pensado muito em você nos últimos dias. E apesar das minhas constantes reclamações no Twitter, sua ausência virtual me fez lidar com uma ridiculamente previsível rejeição. Antes de você saber que teria que me dar um fora, eu já estava preparada para ele. O problema foi que você não me deu o fora; ontem você me perguntou quando eu volto pra Curitiba, porque, pelo que entendi - e tentei ser absolutamente cética quanto à finalidade da sua pergunta - você quer me ver de novo.
Quão debilitada emocionalmente devo estar para ter dificuldade em aceitar que alguém, neste planeta, se interessaria em me ver outra vez?
Você e seu cabelo brilhante que quase me fez perguntar qual a marca do seu shampoo. Com essa dificuldade estranha em entender o que eu digo, mesmo que eu use níveis baixíssimos de sarcasmo, para evitar que você perceba o quão doida eu sou. Estou tentando ao máximo postergar essa descoberta, porque depois dela, de fato, ninguém volta.

Quando te convidei para voltar, três dias depois de ter conhecido meu quarto ameaçadoramente bagunçado pela primeira vez, jurei que você não aceitaria. Você sequer se manifestou, pra ser sincera com minhas memórias. Demorou para me responder e eu achei que estava apenas tentando achar uma maneira de escapar daquela proposta sem ser um completo imbecil comigo. Teria apostado nisso. Mas, para meu deleite, você não só aceitou o convite, como se aventurou nos terminais até minha casa e chegou, cansado e disposto ao mesmo tempo, com uma troca de roupas na mochila, me pedindo para usar meu chuveiro. Me faltam palavras para descrever o quanto me deliciei com aquele momento de medíocre intimidade, supérflua e profunda ao mesmo tempo, nas mesmas proporções. Foi um daqueles momentos em que não temos outra opção, senão confiar num completo estranho. E que completo estranho você se saiu naquela noite, onde estávamos sozinhos no meu apartamento; um momento raro que deve, de fato, ser aproveitado. Não vou mentir: por mim, você teria chegado na sexta e ido embora na manhã de segunda, sem a menor pressa. Mas nossa aventura durou apenas uma noite, e na manhã seguinte você fugiu de volta pro seu quarto compartilhado no centro da cidade, enquanto me dei o prazer de passar uma hora inteira apenas sentindo o sol através da janela, queimando minha pele, pensando na noite em claro que havíamos acabado de passar juntos. Soo apaixonada, eu sei, e talvez estivesse, mas não por você. Me pego apaixonada por esses momentos raros de cumplicidade absoluta que tenho com completos estranhos. Ou, neste caso, um estranho, mas não mais por completo. Entende?

Valorizo muito esses momentos. Já passei por poucas e boas com todo tipo de homem por essa cidade. Já transei em camas muito, muito caras, em bairros nobres, dentro de pequenas mansões, como também passei noites dormindo em sofás muito, muito velhos, em apartamentos abarrotados no centro, divididos entre sabe Deus quantas pessoas. Beijei bocas que sabiam o que estavam fazendo, e outras que não tinham a menor ideia de como proceder. 
Assisti a estreia de um filme do meu diretor favorito com um qualquer com quem hoje não só perdi contato como também evito retomar.  
Beijei bocas que pagaram a conta cara, mas que não sabiam usar a língua. 
Outras que me convidaram para jantar, e eram melhores contando histórias do que tentando me convencer a passar a noite. "Não, obrigada, eu até tomaria mais um gim-tônica, mas preciso urgentemente voltar para casa porque... bem... porque eu quero". Era um gim caro, que ele trouxe de uma viagem que fez para a Ásia, e eu nunca mais vou tomar nada daquele calibre, mas a vida é assim. Se pelo menos ele fosse dez centímetros mais alto e soubesse beijar... eu aceitaria apenas um desses dois itens. Bom, pelo menos um. 

O que quero dizer é que já me meti em todo tipo de sexo casual, ou quase-sexo casual, e você com certeza está no topo da lista. Por enquanto está empatado, numericamente, com um outro, por quem admito ter tido uma quedinha um pouco mais acentuada, e com quem troquei mensagens extremamente gráficas, mas que não mora mais aqui, e portanto é um contato arquivado, até segunda ordem. 
Você, bem, não troca mensagens tão sexuais, e pra ser sincera, mal responde meu "bom-dia", mas eu sinto que não é por mal. Dá pra perceber pelo seu tom. Dá pra perceber pela forma como você reage quando eu ameaço começar uma troca de mensagens explícitas. Ah, claro que dá. Quando você escreveu "Quando você volta?", eu percebi que as brincadeiras ainda nem tinham começado. E eu gostei. É estranho pra mim, porque geralmente não me dou o luxo de me sentir dominada, mas com você é uma descoberta. Gosto de permitir que você me diga o que fazer. E sim, como você mesmo percebeu, não é algo que eu faça com frequência. A única pessoa que eu obedeço é a minha mãe, pelo amor de Deus. Mas quando você me disse, por cima de mim, que eu não poderia te beijar enquanto aquilo não acabasse, senti uma mistura de ódio e submissão tão forte que sequer tive o ímpeto de responder. Que bizarro. E o pior foi eu ter gostado

07 de junho de 2019

Mal nos falamos nos últimos dias. Não vou entrar em detalhes, mas te convidei pra sair, pra tomar uma cerveja, para vir até em casa, e você não topou. Disse que queria sair comigo de novo, mas não naquele dia. E desde então, meu interesse foi diminuindo em velocidade automobilística. Não há maneira de eu me manter interessada quando conversar com você é tão difícil. Tive dias ruins, e você até tentou se dispor, mas sinceramente, nem poderia. Somos meio conhecidos com um interesse em comum que não inclui me acalmar durante uma crise de ansiedade. Essa mensagem, portanto, é apenas para que eu me lembre. Lembre-me de que tentei, de fato, e que inclusive acabei de te enviar uma mensagem, sabe-se lá a troco de quê - mas mandei. Mas não espero resposta. Honestamente, nem quero. Foi um ponto final. 

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Mais ou menos nove bons motivos

Todos os dias
logo pela manhã
me pergunto incisivamente
por quais motivos
ainda não pulei
da janela do meu apartamento.

Geralmente concluo
mais ou menos nove
- bons - motivos.

Primeiro:
minha mãe ficaria triste,
e eu não vim pra este mundo
para fazer minha mãe se sentir assim.
Segundo:
meus irmãos sentiriam minha falta.
Terceiro:
meus cachorros sentiriam minha falta.
Quarto:
meus amigos ficariam tristes,
e eu não vim pra este mundo
para fazer meus amigos se sentirem assim.
Quinto:
meus avós ficariam muito tristes,
e eles estão velhinhos demais para
ficarem muito tristes,
especialmente por minha causa.
Sexto:
ainda não me resolvi com meu pai,
e isso o assombraria para sempre.
Sétimo:
eu ainda não fiz um projeto do qual
sinta um grande orgulho.
Oitavo:
muita gente precisa de mim,
e apesar de ser o motivo
de todo meu estresse,
eu jamais abandonaria
meu trabalho pela metade.
Nove:
...

Como eu disse,
mais ou menos
nove bons motivos
todos os dias.

Em algumas manhãs incluo
meus próprios desgostos
e frustrações,
como, por exemplo,
nunca ter deixado
marca alguma no mundo.

Às vezes decido
tirar meu pai dessa lista;
mas esses são dias
em que acordo chateada.
A culpa é mais minha
do que dele.

Num geral
tento me lembrar
de quem me ama
e quem eu amo,
e me lembro
que não quero magoá-los,
não quero abandoná-los,
e que por pior
que seja o sentimento
de existir,
na maioria das vezes
encontro boas razões
para me levantar,
olhar pela janela
e não me jogar dela.

Alguns dias
são mais difíceis que outros,
nem sempre eu consigo,
e aprendi
que tudo bem.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Unbalanced

Quando eu finalmente deixo
as lágrimas correrem pelo meu rosto
já é tarde demais.
O cansaço já me corroeu,
a dor já é lancinante
e eu já gritei com algum inocente
desavisado que cruzou meu caminho.

Quando eu finalmente permito
que a tristeza transborde meus olhos,
já é tarde demais.
Minha carne já se tornou chumbo
e até minha sombra é capaz de dizer
que não sobrou nada de mim
além do que está podre.

Quando eu admito
que talvez minha velha amiga
não tenha ido embora
como eu ingenuamente acreditei,
já é tarde demais.
Ela já cravou as garras no meu peito
e arrancou minhas entranhas
sem piedade.

Quando eu me lembro
que a depressão não se cura,
que preciso estar sempre atenta
e cuidando de mim mesma,
já é tarde demais.
Engoli uma barra de chocolate
sem vontade
e agora me sinto pior
por ceder à compulsividade.

Metade de mim chora,
metade de mim grita.
Não há equilíbrio
entre o que sente ódio
e o que precisa de carinho.
Preciso ser cuidada mas
por favor
não me toque.

Dou uma risada para disfarçar
minha pressa em ir embora,
em ficar sozinha,
em poder chorar em paz.
Finjo que ninguém me olha
e se pergunta:
"Como ela consegue?"
Mal sabem eles que a resposta
é negativa.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Conversas que só existem na minha cabeça pt. I

- Oi!
- Ah, oi!
- Como você tá hoje?
- Um pouco apressada.
- Você tá sempre apressada.
- É. Acho que você tem razão.
- Queria conversar.
- Tenho uma reunião agora, mas - não - na verdade tenho cinco minutos. Quer tomar um café?
- Ahn, acho que sim. Claro.
- Ok,é que eu preciso de um. Aí podemos conversar.
Descem ao térreo, ela compra um café com leite. Sentam-se aleatoriamente.
- Ok, o que você precisa?
- Não entendi.
- Você disse que queria conversar. Como posso te ajudar?
- Não preciso de nada, só quero saber como você tá.
Choque.
- Ah.
- Que foi?
- Ninguém me pergunta como eu tô.
- Mas você tá sempre falando com um monte de gente.
- É, é verdade. Mas tô sempre resolvendo algum problema.
- Dá pra ver.
Ela sorri.
- E então?
- Então o quê?
- Como você tá?
- Correndo.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

1, 2, 3

X

Estão juntos há 45 anos. Na hora do almoço, ele prepara a refeição; fez as compras de manhã, depois da caminhada matinal que praticam juntos já há algum tempo. Ela se ocupa em manter a casa limpa, as roupas lavadas e o chão com o mínimo de farelos possível. Contrata uma diarista para faxinar o sobrado de tempos em tempos, já não tem disposição nem vontade suficiente para esfregar o chão e as privadas. Lá pelas duas da tarde, ela pede para ir à costureira, buscar uma blusa que mandou fazer para o neto mais velho, que vem da capital passar o próximo feriado na casa da mãe. O marido, deitado, começa seu ritual de ir ao banheiro, pentear-se e reclamar um pouco para, então, poderem sair. Ela poderia ir a pé, mas está muito sol. Não dirige há mais de dez anos, e sabe qual seria a resposta se pedisse as chaves do carro. Ele é carrancudo, mas ela sabe como funciona. Ela tenta manter o bom humor em todas as situações. Seu choro é raro e leve, suas tristezas são todas passadas, e já não se sensibiliza com tanta facilidade. Eu, como espectadora, diria que morreu um pouco por dentro. Não saberia que resposta dar se lhe perguntassem se ainda ama o marido. "O amor acaba?", perguntei uma vez. "O que é acabar o amor?", respondeu, "é desistir? É deixar de tentar? Ou ir embora... por que as coisas mudam?"


XI

Estou mais uma vez esperando para conhecer um novo homem. Sentada na mesa de um dos milhares de bares adorados pela classe média dessa cidade, onde a cerveja é cara e a comida é gordurosa, com mesas bambas de madeira na calçada, para que tenhamos essa sensação falsa de sermos parte da cidade por algumas horas. (Depois voltamos para casa em nossos carros, para dentro de nossos condomínios seguros e absolutos, onde ninguém entra.) Ele para na porta baixa do bar e varre todas as mesas com os olhos, procurando alguém que corresponda àquelas fotografias postadas em uma rede social. Seus olhos batem nos meus e automaticamente, aceno. Abro um sorriso tão amargo que até aquela cerveja vagabunda pareceria doce. O cidadão não tem mais de um metro e setenta e cinco de altura, e isso já me deixa menos agoniada, dada a minha estatura e essa necessidade estúpida de que o homem da vez seja no mínimo da minha altura (necessidade essa da qual ainda não consegui me livrar). Mas mesmo sua estatura felizmente não tão mediana é incapaz de me animar. Ele não está mais animado do que eu, que à princípio devo parecer uma fraude se comparada à minha própria propaganda virtual. Ele se aproxima, eu me levanto, o cumprimento com um beijo no rosto. Nos sentamos, ele pede um chopp, eu o acompanho. "E então", ele suspira, sorrindo com cuidado, "É a primeira vez que faço isso". Sorrio com empatia, sentindo sua dor. Ele parece tão humilhado quanto eu, quando paro para pensar que agora preciso de aplicativos de celular para conhecer alguém. "É, eu já estive onde você está", rio, "Espero ser uma boa primeira experiência. A minha foi péssima". Ele pede que eu conte, e começo a descrever a fatídica noite onde me encontrei com um rapaz cuja idade e altura não correspondiam às suas mentiras virtuais. Ele ri das minhas piadas e eu sinto que não faz tanto esforço para manter a conversa. Me joga olhares meigos e não parece um leão observando uma zebra manca, como alguns outros me fizeram sentir. Pedimos uma porção de qualquer coisa para beliscar e me pego reparando em seu cabelo com fios grisalhos. Me sinto atraída por ele. Torço apenas para que, numa exceção, a noite termine bem, como começou.


XII

Está procurando documentos importantes que costumava deixar guardados numa pasta transparente, na estante de livros. Quando puxa com força um amontoado de papéis, caem meia dúzia de livros, e entre eles, sua bíblia. A mãe lhe dera há muitos anos, e ainda a lia de tempos em tempos, buscando histórias para passar noites difíceis ou para caçar respostas ácidas para crentes fervorosos que condenam a homossexualidade em nome do Senhor. Para sua surpresa, de dentro do livro grosso, cai uma fotografia. É seu ex namorado. Não se falam há anos. Por que isso está aqui? "Eu orava por ele", lembra-se, com um pesaroso suspiro. Orava, rezava, pedia à Deus que o direcionasse, afastasse das drogas, das más pessoas. Sabia que a má pessoa muitas vezes era ele mesmo, mas quem pode julgar uma adolescente apaixonada? Buscava todo tipo de desculpa para livrar-lhe o pescoço. Nunca fechou os olhos para seus defeitos, mas tentava fazer deles apenas isso, defeitos, e não toda a definição de sua personalidade. Aos quarenta e cinco do segundo tempo, quando o garoto se mudara para a cidade onde ela morava, desistiu. Não tinha mais energia para carregar um relacionamento sozinha. A bebida o havia tornado rude e mais folgado do que o de costume. E ela não era mulher de arrastar homem algum. O relacionamento viu seu fim precoce numa noite de luar claro, quando ela precisou carregá-lo para casa. Amor, sozinho, não sustenta esse tipo de coisa. Lembra-se claramente da decisão de livrar-se. Mas guarda as fotografias com carinho. Não pode dizer que tudo foi sombrio. O amor era bom.