quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Maria

"Ah, então é um encontro."
Foi isso que Milena me disse, pouco antes de eu sair de casa, quando comentei inocentemente que encontraria você no terminal para irmos juntos. "Quem mais vai?" foi a pergunta que veio antes, e só agora vejo como ela já planejava me acusar de estar fazendo tudo que eu disse, tantas vezes, que não faria. É quase cômico.
— Não é um encontro, eu juro — jurei.
O olhar que ela me lançou é impossível de descrever. (Ela não te odeia.)

Feliz que estava, vestindo meu casaco falso de burguesa, meu melhor batom vermelho, a meia-calça com quase nenhum rasgo, saí para a noite fria. O vento uivando, fazendo meu cabelo dançar, e eu me perguntando se não deveria ter apostado num cachecol.
O primeiro sinal de que a noite seria incomum (mas positiva) foi quando uma mulher caridosamente pagou minha passagem para que eu pudesse pegar um desses ônibus sem cobrador. Agradeci o quanto pude, lamentei não ter nada além de uma nota de vinte, mas ela pareceu não se incomodar; comentou ter gasto uma passagem a menos naquele dia. Pequenas ações altruístas.
No terminal, deixei passar apenas um 303. Você chegou logo, e demorei pra me permitir ficar confortável, possuída pela ideia de que você só aceitou minha companhia por mera educação. Não posso negar, ainda estou presa à isso. Mas você parecia contente, satisfeito com o bolso interno do seu casaco, carregando sua já característica bolsa preta, um Roberto desenhado nela (antes de Robertos serem Robertos, diga-se de passagem). A conversa fluiu, como sempre, e passeamos por tantos assuntos que mal me lembro; seria impossível listar. Me pergunto com certa frequência como conseguimos falar tanto; me impressiona e assusta em proporções muito semelhantes.
Os assuntos variam entre amenidades e problemas, o leve e o obscuro, e nós entramos e saímos desses vórtices com facilidade, quase sem carregar nada. No meio desse vem e vai, chegamos ao destino. Caminhando até a universidade, eu me perguntava se nossa aparência acusava inocência; afinal, por mais que existam incontáveis poréns na nossa relação, não há maldade.
Chegamos ao nosso destino, recebemos o programa da apresentação da Camerata, e fomos em busca de lugares. O auditório estava lotado, e emanava uma energia diferente do comum. Eu fiz sinal pra que você fosse na frente e escolhesse os lugares, mas recebi uma recusa e uma frase que dizia algo como "Eu não sou bom nisso, faça você". Tomei a frente, escolhi os assentos e nos acomodamos. Não demorou e uma senhora elegante nos abordou.
— Olá — ela sussurrou, o tom extremamente cuidadoso, curvando o corpo para se aproximar —, esses assentos do meio estão reservados para os moradores de rua. Mas se vocês estiverem confortáveis, não precisam sair. Só estou avisando, e caso vocês prefiram mudar de lugar, podem sentar nas cadeiras dos cantos, que são para o público. Mas se estiver tudo bem pra vocês, podem ficar.
Estávamos inclinados para ouvir o que ela dizia, e gosto de pensar que você ficou tão chocado quanto eu quando ela sugeriu que trocássemos de lugar. Educadamente recusei — por nós dois.
Era uma apresentação especial da Camerata para angariar alimentos para pessoas em situação de rua. Eu me lembrava vagamente de ter lido isso na descrição do evento, mas para minha mais agradável surpresa, essas pessoas não eram apenas o alvo da campanha, mas da apresentação.
Não tenho palavras para descrever com a devida fidelidade como essa noite foi importante pra mim. A experiência de estar numa plateia que não se aquietava, comovida, e cujas reações acompanhavam sem pudor suas emoções, foi única. Você, ao meu lado, não se preocupava em disfarçar os olhos marejados; um homem que sente. Boquiaberto, atencioso, estava ali de corpo e alma, um amante da música, sensível às suas influências e poderes. [In]Felizmente minha atenção era toda das vozes talentosas que ocupavam o palco, então minha análise dá-se pelo que captei com o rabo dos olhos, mas mesmo assim. É bonito.
Compartilhamos emoções, risos disfarçados, comentários bobos e julgamentos inofensivos. Não posso dizer que chorei, porque infelizmente o chorar se tornou uma sina para minha existência, carregando pesos que não posso soltar, mas devo admitir que senti minha voz embargada por um instante, quando me inclinei sobre você e confessei amores pela voz grave que nos havia acariciado os ouvidos. O que durou pouco mais de uma hora e meia, por mim, poderia ter durado a noite toda.
Quando acabou, depois de diversas palmas, gritos e assobios, aguardamos para cumprimentar o astro da noite. Enquanto o auditório se esvaziava rapidamente, a Camerata se reunia no palco, posando para fotos, e eu sugeri que fizesse você mesmo uma fotografia, com sua já tradicional câmera analógica. Foi como se eu tivesse te contado um segredo, tal foi seu estalo; quero muito ver essa foto. André, o astro, finalmente se fez disponível, clara e genuinamente feliz com nossa presença. Nos apresentou sua mãe, madrinha e avó, comentou sobre tudo e mais um pouco, radiante. Fomos todos juntos até a saída; enquanto vocês dois riam alto, é claro que fui conversando com a mãe. Nunca conheci uma que não me amasse instantaneamente, e embora não entenda esse fenômeno, me faz muito feliz. Quando chegamos à frente da universidade, hora das despedidas. Abracei a madrinha, a avó, a mãe; parabenizei pelo rapaz brilhante que pariu e criou. Ela deu uma risada honesta e eu me senti mais leve. Abracei André com toda gratidão e boas energias que sou capaz de emanar. Eu sei que não é muito, não precisa rir, mas foi sincero. Enquanto eles discutiam o próximo passo (um ônibus ou um Uber, a clássica discussão contemporânea), eu te olhei, já segurando o fôlego, e perguntei da forma mais cínica que consegui:
— E você, já vai embora?
Cerrou de leve os olhos de estrela, abriu um daqueles sorrisinhos curtos de canto de boca e disse exatamente o que eu queria ouvir:
— Ah, pensei em tomar uma cervejinha, né?
Nossos olhares cúmplices se tocaram e eu sorri.
Não há nada em você que não seja exatamente o que eu quero.
"Adeus, tchau, obrigada, até amanhã". Despedidas finalizadas, me viro pra você a fim de decidir o próximo passo, quando vejo com o canto dos olhos uma figura conhecida. Amiga antiga, parece agitada. Não vou me aprofundar muito, mas ela passava por um momento complicado, confuso. A maquete do TCC2 deu errado; níveis invertidos, material jogado fora, trabalheira manual foi pras cucuias. Estava à beira de lágrimas, se me perguntar, mas percebi que o riso desesperado ocupava todo seu ser, concentrando sua energia. Ajudei como pude, num momento tão delicado — e repentino. Passei o telefone de uma cortadora a laser, sugeri uma gramatura de papel, e desejei boa sorte. Ela parecia aflita, mas honestamente, eu não sabia o que fazer. Percebi que você assistia àquela cena tão confuso quanto eu. Quando ela se foi, tensa, mas com uma perspectiva de salvação, nós dois finalmente tomamos nosso caminho: o bar.
Uma quadra e meia depois, chegamos. Você já tinha pago uma cerveja a mais alguns (poucos) dias antes, quando nos reunimos por acidente no boteco que eu mais adoro; lá você conheceu o querido Lucas, carinhosamente apelidado Barzonzinho, e nós dois conversamos sobre tudo, como sempre, inclusive sobre nós. É uma conversa que tem sido recorrente, e isso me desagrada profundamente*. Foi, no entanto, pequena parte de todos os milhões de assuntos discutidos, conversados, ridos. Sua companhia é, de fato, importante pra mim. Muito mais do que você imagina. Talvez mais do que eu imagino. A cerveja a mais, no entanto, ainda me assombrava, e eu quis pagar naquela noite.
— Vou comprar duas, pra ficarmos quites — tentei, já sabendo que você encontraria algum empecilho.
— Se você comprar duas, eu compro duas também.
— A gente não vai beber quatro litros. 
Aqui, um olhar desafiador.

Acomodamo-nos numa mesa alta, com banquetas confortáveis, na porta do bar. A cerveja congelada fui eu que trouxe, mas foi você que levou de volta pro balcão; eu tive preguiça. Pra minha sorte, você é muito educado. Voltou com uma garrafa apenas suficientemente gelada. Servi nossos copos, brindamos, e por um milésimo de segundo, senti como se não houvesse no mundo forma mais simples de me fazer feliz. Sua companhia me é suficiente de tantas maneiras... espero algum dia poder te fazer sentir qualquer coisa minimamente similar à essa alegria que me preenche quando percebo como somos bons amigos, como sua presença e atenção me bastam, e como sinto que existe, de alguma forma, uma reciprocidade real dentro da nossa relação. Não é sempre que acredito nela, mas nesse dia, acreditei. Começamos com longas dissertações sobre a apresentação emocionante que havíamos acabado de presenciar, e mesmo com o clima frio, a cerveja gelada descia confortavelmente; uma sensação de carinho em minha garganta. A conversa seguiu seus trilhos confusos, mas contínuos. Você tem uma mania de tomar a cerveja em grandes goles; pobre do copo americano. Reparei desde a primeira vez que saímos para beber, e verdade seja dita, isso me irrita desde então, mas quem sou eu para corrigir a forma como você bebe? Algumas linhas não devem nunca ser cruzadas. 
O primeiro litro voou; passou rasante pelos meus olhos, sem deixar sequer rastro. Você, ágil, correu pro bar com seu papelzinho na mão, e voltou logo. Não tenho muitas descrições pra este momento; mal sei dizer quanto tempo ficamos no bar. O que sei dizer é que as cervejas foram embora, e eu me senti muito ingênua; já deveria saber que grande pinguço você é: um do mesmo calibre que eu. Começaram a baixar as portas e ficamos atentos. Você então foi buscar a nossa saideira, que foi servida em copos descartáveis de quinhentos. Com a cerveja pra viagem, saímos para a noite fria. Descrevo como noite fria simplesmente porque eu vestia um belo casaco e meias grossas, mas sequer posso afirmar qual era o clima. À essa altura, as memórias começam a se tornar um pouco mais turvas do que o de costume, mas de duas coisas me lembro com clareza: precisávamos fazer xixi (os dois), e eu pedi que pegássemos o ônibus (talvez o último) na Rui Barbosa, porque queria muito te mostrar o apartamento novo. Não mostrar, claro, mas passar por ele, te tornar parte daquilo tudo de alguma forma. Você sequer titubeou. 

Quando começamos a seguir pela Westphalen e entramos na quadra certa, eu comecei a caminhar para o canto da calçada, afim de olhar para o apartamento; mas você, que estava me seguindo como uma sombra, não percebeu o que eu fiz, e me trombou com força. Sequer sei dizer qual cerveja foi, mas voou na minha roupa, molhou meu braço, encharcou o folheto da Camerata que eu segurava nas mãos. Ri descontroladamente, enquanto você parecia ainda mais confuso que o normal. Avisei que estava apenas olhando para cima para ver o apartamento, indignada com a sua falta de atenção, e você só sabia pedir desculpas. Foi então que eu vi que a placa de "Aluga-se" havia desaparecido da imensa janela da frente; lembro de sentir um arrepio novo percorrer todo meu corpo. Foi nessa noite, nesse momento alcoolizado, que finalmente percebi que as coisas estavam acontecendo, eu ia me mudar, e estava fazendo tudo acontecer praticamente sozinha (mas isso é assunto pra outro texto). Apartamento apresentado, seguimos para o tubo. Ambos desesperados por um banheiro, sim, e foi por isso que a ideia brilhante surgiu: vamos até a Rua 24 Horas. Certamente está aberta — confiamos cegamente no título que carrega — e nos deixariam usar o banheiro. Passos apertados e risos contidos, "caralho, eu preciso muito mijar". Chegamos. Um bar aberto, graças à deus. Educadamente pedimos para por favor usar o toilette, e deixaram. E aqui o detalhe que não vou esquecer; tocava 1406, do Mamonas Assassinas, nos alto-falantes. Comecei a cantar com a maior naturalidade do mundo, e você mais uma vez pareceu tão perdido quanto uma criança sozinha num hipermercado. 
— Todo mundo conhece essa música.
— Eu não conheço.
— É Mamonas Assassinas! Você não teve infância?
— Meu pai não ouvia Mamonas Assassinas.
— E o que seu pai ouvia?
— João Gilberto.
Tenho certeza de que ri na rua cara, sem disfarçar.
Descemos as escadas (havia escadas, sim, perigosíssimas), e quando passamos pelo bar, mãos vazias, você não se conteve:
— Vamos tomar um gim-tônica?
Mais tarde soube que você quase não sugeriu porque pensou que eu negaria. Para sua (não aparente) surpresa, peguei a carteira, honestamente admirada pela ideia genial de beber mais álcool. Acomodados nas banquetas confortáveis do bar, que na verdade fechava as portas, dividimos uma boa dose de gim, água tônica e limão (talvez uma folhinha de hortelã). O barman e a mulher no caixa não pareceram se incomodar com a nossa presença, e nós certamente não parecíamos ter pressa alguma, portanto, tudo estava bem. Não faço a menor ideia do que conversamos; a cerveja já havia sido muito bem absorvida pelas nossas correntes sanguíneas, e eu só consigo me lembrar de uma sensação maravilhosa de paz permeando toda a minha existência. 
Quando o gim se foi mas ainda restava alguma água tônica na lata, foi óbvio: "Você pode me ver mais uma dose, por favor?". Duas doses de gim para duas pessoas já alcoolizadas é mais do que suficiente. Continuamos acomodados nas mesmas banquetas, no mesmo balcão, até que finalmente bebemos tudo e eu decidi que era hora de ir embora. Seu 99 estava com desconto, portanto você chamou o carro. E é aqui, exatamente neste instante, que começa a minha tragédia. Você me perguntou sobre, e sinto muito, mas eu menti. 

Enquanto esperávamos pela nossa carruagem moderna, eu me aproximei de você. Não sei se foi apenas por ser uma bêbada descarada e carente, ou se eu senti frio e procurei calor, ou qualquer que tenha sido a razão, mas fui me aconchegando no seu abraço. E você deixou. Quando me dei conta (e por essa inocência, suspeito que tudo tenha acontecido porque senti frio), meus braços acomodaram-se ao seu redor e me percebi abraçada em você, olhando seu celular. Nenhum de nós parecia preocupado. Bem, você não tinha motivo algum, mesmo. Mas eu deveria estar. 
Quando o carro chegou, entramos juntos no banco de trás. Provavelmente eu entrei primeiro, ou dei a volta, porque me lembro de estar atrás do motorista, do lado esquerdo. Quando começamos a andar, me aproximei novamente, aconchegada no seu ombro, abraçada em você como uma preguiça. Sua mão repousou — inocentemente? Nunca vou saber — no meu joelho direito, e disso eu me lembro com clareza sóbria: um arrepio correu pela minha espinha. Seus dedos acariciavam aqueles quatro centímetros quadrados de mim — a pele sob a meia-calça ardia, como se seus dedos fossem brasa — e eu só conseguia sentir uma mistura alcoólica de tesão, confusão e tristeza. Tesão porque até a sua respiração me excita; confusão porque, bem, eu não faço a menor ideia de como você se sente sobre mim, se tem vontade de me beijar, de me foder, ou de ser apenas mais um homem fora da minha categoria Amigos Com Quem Posso Transar; tristeza porque eu já sabia que nada ia acontecer, mas a esperança (como descrevo em outros momentos) acaba comigo. Você conversava com o motorista e eu agradecia em silêncio; geralmente quem faz esse papel sou eu, mas naquela noite eu só queria existir. Sabe, por um milésimo de segundo eu considerei erguer o rosto, te olhar nos olhos e tomar uma atitude. Foi como uma injeção de adrenalina bem no meu estômago, e eu tive certeza de que você retribuiria, então iríamos para sua casa e dormiríamos juntos — talvez literalmente. Durou exatamente isso: um milésimo de segundo. Ouso dizer que te provoquei, perguntando algo sobre para onde eu iria, mas você foi evasivo, mesmo que entre risos. Quando o carro estacionou em frente ao meu condomínio, me despedi com um beijo no rosto, dei adeus ao motorista, e descemos — eu e meu ego ferido. Cheguei em casa a própria frustração. Escovei os dentes, despi minhas mentiras, deitei na cama, vi suas mensagens; ignoradas deliberadamente. Dormi com lágrimas batendo na porta.

Dia seguinte, uma ressaca leve me coçando a nuca, mas a alegria pelas boas lembranças era mais forte. Nos encontramos, e você quis perguntar o que diabos havia acontecido para que eu mandasse aquela mensagem — algo dizendo "não faça isso" —, mas te convenci de que estava tudo bem. Mentindo. Infelizmente minto muito pra você. É necessário para a manutenção da nossa relação. 

Só não sei por quanto tempo terei forças para sustentar essas mentiras. Mal sei dizer quem estou tentando proteger com tudo isso. Você? Eu? Me fazer crer que sou capaz de conviver com o homem por quem sou apaixonada sem deixar que isso destrua nossa amizade? Mas por quê? Por que é pior sem você? Quando me permito refletir sobre tudo isso por um momento, concluo que minha intenção é apenas provar que sou feita de pedra.
O único problema é que não sou.


*[Não gosto de pensar que existe em você qualquer necessidade de esclarecer o que quer que seja, e me apavora pensar que você tenha esses pensamentos passeando pela sua mente a qualquer momento. Isso é tudo culpa minha, e não importa o que eu faça, quanto eu implore, não há maneira de fazer com que você esqueça tudo que já nos aconteceu. Eu sei que soa exagerado, mas você é incapaz de conceber o quanto sinto ódio de mim mesma por ter, em algum momento, fraquejado tanto à ponto de expor minha ferida mais profunda.]