sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

1, 2, 3

X

Estão juntos há 45 anos. Na hora do almoço, ele prepara a refeição; fez as compras de manhã, depois da caminhada matinal que praticam juntos já há algum tempo. Ela se ocupa em manter a casa limpa, as roupas lavadas e o chão com o mínimo de farelos possível. Contrata uma diarista para faxinar o sobrado de tempos em tempos, já não tem disposição nem vontade suficiente para esfregar o chão e as privadas. Lá pelas duas da tarde, ela pede para ir à costureira, buscar uma blusa que mandou fazer para o neto mais velho, que vem da capital passar o próximo feriado na casa da mãe. O marido, deitado, começa seu ritual de ir ao banheiro, pentear-se e reclamar um pouco para, então, poderem sair. Ela poderia ir a pé, mas está muito sol. Não dirige há mais de dez anos, e sabe qual seria a resposta se pedisse as chaves do carro. Ele é carrancudo, mas ela sabe como funciona. Ela tenta manter o bom humor em todas as situações. Seu choro é raro e leve, suas tristezas são todas passadas, e já não se sensibiliza com tanta facilidade. Eu, como espectadora, diria que morreu um pouco por dentro. Não saberia que resposta dar se lhe perguntassem se ainda ama o marido. "O amor acaba?", perguntei uma vez. "O que é acabar o amor?", respondeu, "é desistir? É deixar de tentar? Ou ir embora... por que as coisas mudam?"


XI

Estou mais uma vez esperando para conhecer um novo homem. Sentada na mesa de um dos milhares de bares adorados pela classe média dessa cidade, onde a cerveja é cara e a comida é gordurosa, com mesas bambas de madeira na calçada, para que tenhamos essa sensação falsa de sermos parte da cidade por algumas horas. (Depois voltamos para casa em nossos carros, para dentro de nossos condomínios seguros e absolutos, onde ninguém entra.) Ele para na porta baixa do bar e varre todas as mesas com os olhos, procurando alguém que corresponda àquelas fotografias postadas em uma rede social. Seus olhos batem nos meus e automaticamente, aceno. Abro um sorriso tão amargo que até aquela cerveja vagabunda pareceria doce. O cidadão não tem mais de um metro e setenta e cinco de altura, e isso já me deixa menos agoniada, dada a minha estatura e essa necessidade estúpida de que o homem da vez seja no mínimo da minha altura (necessidade essa da qual ainda não consegui me livrar). Mas mesmo sua estatura felizmente não tão mediana é incapaz de me animar. Ele não está mais animado do que eu, que à princípio devo parecer uma fraude se comparada à minha própria propaganda virtual. Ele se aproxima, eu me levanto, o cumprimento com um beijo no rosto. Nos sentamos, ele pede um chopp, eu o acompanho. "E então", ele suspira, sorrindo com cuidado, "É a primeira vez que faço isso". Sorrio com empatia, sentindo sua dor. Ele parece tão humilhado quanto eu, quando paro para pensar que agora preciso de aplicativos de celular para conhecer alguém. "É, eu já estive onde você está", rio, "Espero ser uma boa primeira experiência. A minha foi péssima". Ele pede que eu conte, e começo a descrever a fatídica noite onde me encontrei com um rapaz cuja idade e altura não correspondiam às suas mentiras virtuais. Ele ri das minhas piadas e eu sinto que não faz tanto esforço para manter a conversa. Me joga olhares meigos e não parece um leão observando uma zebra manca, como alguns outros me fizeram sentir. Pedimos uma porção de qualquer coisa para beliscar e me pego reparando em seu cabelo com fios grisalhos. Me sinto atraída por ele. Torço apenas para que, numa exceção, a noite termine bem, como começou.


XII

Está procurando documentos importantes que costumava deixar guardados numa pasta transparente, na estante de livros. Quando puxa com força um amontoado de papéis, caem meia dúzia de livros, e entre eles, sua bíblia. A mãe lhe dera há muitos anos, e ainda a lia de tempos em tempos, buscando histórias para passar noites difíceis ou para caçar respostas ácidas para crentes fervorosos que condenam a homossexualidade em nome do Senhor. Para sua surpresa, de dentro do livro grosso, cai uma fotografia. É seu ex namorado. Não se falam há anos. Por que isso está aqui? "Eu orava por ele", lembra-se, com um pesaroso suspiro. Orava, rezava, pedia à Deus que o direcionasse, afastasse das drogas, das más pessoas. Sabia que a má pessoa muitas vezes era ele mesmo, mas quem pode julgar uma adolescente apaixonada? Buscava todo tipo de desculpa para livrar-lhe o pescoço. Nunca fechou os olhos para seus defeitos, mas tentava fazer deles apenas isso, defeitos, e não toda a definição de sua personalidade. Aos quarenta e cinco do segundo tempo, quando o garoto se mudara para a cidade onde ela morava, desistiu. Não tinha mais energia para carregar um relacionamento sozinha. A bebida o havia tornado rude e mais folgado do que o de costume. E ela não era mulher de arrastar homem algum. O relacionamento viu seu fim precoce numa noite de luar claro, quando ela precisou carregá-lo para casa. Amor, sozinho, não sustenta esse tipo de coisa. Lembra-se claramente da decisão de livrar-se. Mas guarda as fotografias com carinho. Não pode dizer que tudo foi sombrio. O amor era bom.