segunda-feira, 25 de maio de 2020

L'over

Memórias não mudam, não se transformam,
continuam, concretas.
Nada me tira a beleza das pequenas coisas,
o aroma da flor, o som do silêncio.

Muda-se porém a perspectiva;
há temor onde havia ânsia
e o brilho nos seus lábios não desperta
as borboletas que habitam minhas entranhas.

Palpitações ritmadas como as músicas
que encantaram nossas madrugadas.
As faíscas dos nossos olhares
hão de acender meu último cigarro.

Acordou meus monstros com seu suspiro morno,
soprou para longe meu pesar,
e com suas mãos de nuvem
roubou as batidas do meu peito.

Silenciosa, estática, morta
observo pelos vidros sujos
o passar dos dias e das noites
esperando por um sinal do passado.

Aguardo seu retorno. Chega de mentir.
Qual o propósito em negar
meus sonhos secretos?
Apenas mantenha em segredo, por favor.

Memórias não mudam, não se transformam,
e não se repetem.
Cada segundo é único; a experiência
não se repete, jamais, da mesma maneira.

Seu toque jamais será elétrico como foi;
o café não terá aquele mesmo sabor.
Seus olhos terão um sorriso diferente
se é que os verei outra vez.

*

Quem poderia prever que sua tão breve existência
nas páginas rabiscadas da minha história
seria tão profunda, tão dolorosa,
que hoje vejo sua sombra em todas as palavras.

Lendo Focault penso em você.
Ouvindo Kevin Abstract lembro de você.
Vendo os carros pela janela, sinto você.
Existindo, quero você.
Resistindo, esqueço você.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Conversas que só existem na minha cabeça pt. II

— Preciso que você me diga o que eu fiz de errado.
— Você não fez nada de errado!
— Então por que você não me respondia? Um "não quero falar com você" teria machucado muito menos do que o seu silêncio mórbido.
— Eu sei.
— Então me diz, cara. Que foi que eu fiz pra merecer isso?
— Eu não estava pronto pra falar com você.
— Eu não quero que você esteja pronto pra falar comigo. Quero que você me diga quando não estiver. Um "não" é suficiente.
— Você merecia mais que isso.
— Mas não recebi nada.
— Eu sei.
— Você sabe de tudo.
Respiro fundo.
— Lembrei de você tantas vezes — resmungo, engolindo o choro inconveniente.
— Eu lembrei de você também.
— Queria ter te pedido ajuda pra entender um texto do Foucault.
— Você podia ter falado comigo.
— Como? Você não me respondia.
— Eu teria respondido.
— Não pode me julgar por duvidar disso, não é?
— Eu...
— Não é?
— É.
— Você me dizia tanta coisa bonita...
— Era verdade.
— Eu sei que era. Mas machucou muito quando deixou de ser.
— Não deixou de ser. Eu só...
— Eu sei. Eu sei que você não podia. Não conseguia. E eu sinto muito, mesmo, por tudo isso. Que não é nada, ao mesmo tempo, mas foi o mundo pra mim por vários meses. Você foi muito... importante pra mim.
— Você foi importante pra mim também.
— Não seja educado. Eu tô falando sério.
Não há réplica. Respiro fundo outra vez, engolindo em seco.
— Desculpe. Desculpe por te procurar outra vez. Eu só preciso colocar um ponto final nisso tudo pra conseguir dormir em paz.
— Desculpe por não poder ser o que você precisa.
— Eu não preciso de você, seu tonto. Gosto da sua companhia. Gosto de conversar com você. Não quero ser sua namorada nem casar com você em quinze dias. Eu só...
Não sei terminar a frase. Não sei o que eu quero.
— O quê?
— Eu só queria poder te mandar as músicas novas do Brockhampton e saber que você pode me ajudar quando eu precisar entender um conceito.
— Você pode me mandar o que quiser, e eu quero te ajudar no que puder.
— Não. Não é assim.
— Mas pode ser.
— Você é mais que isso. Eu estou mentindo pra sentir menos dor.
— Obrigado por ser honesta.
— É difícil pra mim.
— Eu sei.